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O homem-serafim


Em Lisboa, no ano de 1646, o Padre Antonio Vieira faz uma homilia na igreja da natividade. Antonio Vieira sustentou, entre outras coisas, que Jesus assume que muitos não desejam o caminho para o céu ("quem quiser me seguir tome sua cruz"), mesmo querendo o resultado. VIeira diz que o caminho do Cristo passa pela renúncia de si, de colocar o irmão e Deus no lugar de cuidado e proteção que geralmente reservamos aos nossos interesses, enquanto nos tratamos como um "outro" desprezível. O foco desse Sermão eram as chagas de São Francisco, "serafim humano", que conseguiu viver esse ideal: Em sua Carta aos irmãos e irmãs da Penitência, Francisco alerta que não só que a natureza penitente é basicamente a descrita por Vieria, como também aqueles que não praticam a penitência acabam por praticar as obras do mal. O coração humano não fica desocupado, ou tende à santidade ou à idolatria (e isso inclui a idolatria de si).

Em sua biografia sobre o fundador dos Franciscanos, Chesterton retrata o sol que nasce para o mundo (XI canto do Paraíso de Dante) como alguém indiferente ao ridículo que aparenta diante dos homens, como alguém que pretere os prazeres do mundo em favor da intimidade ascética com Deus, e consegue melhor gozar das belezas do mundo por entendê-las como condutoras até a perfeição de Deus e seu amor excelente. Francisco não era um filantropo, o seu amor pelos pobres não era um amor abstrato pelo "povo pobre" ou pela "comunidade", ou mesmo pelo "proletariado". Francisco via em cada pessoa um outro Cristo na cruz. Era essa a razão do seu amor: ver Jesus no nosso irmão garante que ele jamais será abjeto demais para merecer o nosso afeto, ver Jesus no nosso irmão garante que vamos focar em salvar a sua alma imperecível, e não somente o seu corpo.

O Poverello biografado por Johannes Jorgensen também é um apaixonado pela Eucaristia: mendigava óleo para manter a lâmpada diante do santíssimo acesa, no Capítulo de Pentencostes em 1224 ele defendeu que diante da consagração todos os joelhos e sinos deveriam se dobrar (para que todos louvassem a Deus), concluindo que o não reconhecimento do Cordeiro de Deus sob as sagradas espécies condena da mesma forma como o não reconhecimento de Deus em Jesus enquanto ele veio na carne. Temos um homem apaixonado pela transcendência, pela salvação das almas, pelo trabalho (leia sobre a expulsão do irmão mosca), pela obediência à hierarquia eclesial legada por Cristo (buscou a autorização do Papa para montar desde uma Ordem até um presépio e não compactuava com heresias), e tinha uma sede de castidade que o levava a rolar na neve e nas fogueiras (leia os Fioretti).

Em diversos ambientes na Igreja hoje em dia temos abusos litúrgicos. Padres que celebram com o precioso sangue em garrafas PET, com potes de petisco para carregar as hóstias, entrando de motocicleta nos corredores da Igreja... Alguns deles usando a sagrada pobreza, noiva de São Francisco (de acordo com a simbologia usada por Dante), como véu para o seu desleixo e desrespeito. Esses leigos e sacerdotes alegam em sua insensatez que Cristo e Francisco eram pobres, e que, por isso, tratar as sagradas espécies com respeito e deferência, trazendo sempre os melhores materiais a técnicas, seria um exemplo de Farisaísmo e amor às riquezas. É o próprio São Francisco que vem repreendê-los em sua Carta a todos os clérigos, na qual diz que sempre que se encontrar o pão e o vinho consagrados em recipientes vulgares, deve-se movê-los para recipientes ricamente adornados. Não foi um incidente, fase de imaturidade do santo: Em sua Carta a todos custódios, Francisco reafirma que tudo que se refere ao altar deve ser de execução preciosa, com o Corpo e o Sangue recebendo a mais profunda reverência.

A mensagem do pobrezinho de Assis é fundamentalmente uma mensagem de abandono e de amor ardente. Como diria o padre Paulo Ricardo, um dos grandes problemas da humanidade hoje é a imaturidade: o desejo hedonista do homem e da mulher de serem eternos adolescentes, e não crescer para se tornar pais e mães, pessoas que vivem para cuidar e defender, e não apenas esperar graça e sustento dos outros. O amor é doce mas é árido, é bonito mas é silencioso, é importante mas é difícil. A sede de "aproveitar a vida" nos leva a desperdiçar a vida. Aprender com Clara e Francisco é saber se perder e só assim ganhar a vida (Lucas 17,33). O Sol precisa arder para iluminar.


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